Decolonial Education in Brazil - Alfabetizar é muito mais do que ensinar a ler - uma leitura decolonial sobre o artigo “Urge uma nova política pública de alfabetização”
Decolonial Education in Brazil - Alfabetizar é muito mais do que ensinar a ler - uma leitura decolonial sobre o artigo “Urge uma nova política pública de alfabetização”
O artigo da linguista Leonor Scliar-Cabral é um marco necessário na defesa de uma alfabetização baseada em evidências científicas. No entanto, para que essa política pública seja verdadeiramente transformadora, ela precisa reconhecer a diversidade neurocognitiva, afetiva, territorial e intergeracional das infâncias brasileiras.
A neurociência que precisamos: plural, relacional e situada
A crítica ao ensino baseado em mitos — como começar pela escrita do nome ou nomear letras — é válida. Porém, uma neurociência decolonial não se limita à fonologia e à plasticidade sináptica. Ela reconhece que:
O cérebro se desenvolve a partir do corpo, das relações e dos ritmos do território.
A linguagem emerge da experiência, da musicalidade cotidiana, do afeto e do pertencimento.
A alfabetização deve respeitar o tempo do corpo, não o tempo do mercado.
Aprendizado intergeracional: a pedagogia do pertencimento
Nas tradições ameríndias, o aprendizado acontece com a participação conjunta de diferentes idades — crianças pequenas aprendem com os mais velhos, e os mais velhos revivem o saber ao ensinar aos mais novos.
Essa pedagogia:
Cria pertencimento entre irmãos e membros da comunidade.
Estimula o desenvolvimento da linguagem por referência relacional, não apenas por abstração.
Estabelece o saber como um fio contínuo de cuidado e atenção compartilhada.
Com pertencimento, o cérebro organiza melhor suas referências. Com referências afetivas, a leitura e a escrita ganham sentido real.
O “eu alfabetizando” não é só mente: é corpo, afeto, estética e política
Scliar-Cabral aponta que o alfabetizando não é educado como um todo. Concordamos — mas vamos além: o “todo” não é um acúmulo de áreas cognitivas, e sim um ecossistema vivo, onde:
Afetos e sensorialidade estruturam a atenção e o desejo de aprender.
Pertencimento não é uma técnica — é uma condição para que a mente se abra à leitura.
A estética e a narrativa não são "enfeites" — são o modo natural do cérebro criar sentido.
O Sistema Scliar é avanço — mas precisa dialogar com saberes ancestrais
A proposta de formação docente, material didático estruturado e acompanhamento é um passo concreto. Mas para romper com o analfabetismo estrutural do Brasil, é preciso:
Incluir saberes indígenas, africanos e populares como formas legítimas de linguagem.
Reconhecer que a alfabetização ocidental é uma tecnologia recente — não a única.
Ensinar leitura sem apagar as narrativas corporais, sensório-motoras e comunitárias das crianças.
Caminhos práticos de uma alfabetização com base na Neurociência Decolonial:
Começar pelo corpo e pelo ritmo: musicalidade, respiração, dança, coordenação fina.
Criar ambientes afetivos com segurança psicológica e sentido de pertencimento.
Usar metáforas territoriais, histórias locais, mitos e símbolos familiares à criança.
Valorizar o erro e o silêncio como parte do processo de leitura de si e do mundo.
Formar docentes como escutadores, não apenas como transmissores.
Resgatar o valor das relações intergeracionais como forma natural de aprendizado.
Alfabetização é memória viva do corpo-território
Assim como o DNA se expressa quando encontra condições de ambiente, a linguagem floresce onde há vínculo, ritmo e presença relacional. Não alfabetizamos apenas para decodificar signos — alfabetizamos para integrar a criança na continuidade sensorial e simbólica da vida comum.